Gary Francione: Por que o veganismo é sua base moral

© Gary L. Francione

© Tradução: Regina Rheda © Ediciones Ánima

Uma entrevista a Rosamund Raha Revista The Vegan da Sociedade Vegana do Reino Unido Primavera de 2007

Gary Francione é Distinguished Professor de Direito e o Katzenbach Scholar de Direito e Filosofia na Rutgers University, EUA. Seu último livro é o Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? (Temple University Press, 2000), mas ele aguarda a publicação de seu livro novo, The Personhood of Animals, em maio de 2007, pela Columbia University Press. O Professor Francione também tem um excelente websiteque traz algumas apresentações em vídeo explicando sua filosofia em palavras e imagens. Ele nos concedeu gentilmente esta entrevista para explicar sua teoria de direitos animais, que difere da de Peter Singer e da de Tom Regan, e que tem o veganismo como sua base moral.

RR: Qual a diferença que você vê entre bem-estar animal e direitos animais?

GF: O bem-estar animal afirma que é moralmente aceitável usar os animais não-humanos para propósitos humanos, contanto que tratemos os animais “humanitariamente” e não os sujeitemos a um sofrimento “desnecessário”. O objetivo do bem-estar animal é a regulamentação do uso dos animais.

A posição dos direitos animais é a de que não temos nenhuma justificativa moral para explorar os não-humanos, por mais “humanitariamente” que o façamos. O objetivo dos direitos animais é a abolição do uso dos animais.

Existem alguns defensores dos animais—aos quais eu chamo de “neobem-estaristas” em meu livro Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights Movement—que dizem abraçar a abolição como objetivo a longo prazo, mas que argumentam que regulamentações bem-estaristas a curto prazo são a única coisa que podemos fazer, em termos práticos, para ajudar os animais agora. Além do mais, os neobem-estaristas alegam que regulamentações melhores levarão, eventualmente, à abolição.

Eu considero ambos os preceitos da posição neobem-estarista errados.

RR: O que você chama de posição “neobem-estarista” caracteriza a posição de muitas organizações de defesa animal. Por que você a considera errada?

GF: Fora o fato de que um movimento abolicionista deve empregar meios abolicionistas para atingir seu objetivo, não existe nenhuma evidência histórica de que as regulamentações bem-estaristas levem à abolição. Ao contrário, o bem-estar animal tende a fazer o público se sentir melhor quanto à exploração animal. De qualquer maneira, já temos a regulamentação bem-estarista há 200 anos e ela não resultou na abolição de qualquer exploração institucionalizada. Estamos explorando mais não-humanos hoje do que jamais exploramos.

Quanto à questão da orientação normativa, a teoria dos direitos prescreve uma mudança incremental imediata, em forma de veganismo. O veganismo é aquilo que cada um de nós pode fazer já. O veganismo não é uma mera questão de dieta; é um compromisso moral e político com a abolição da exploração animal no nível individual. Já encontrei muitos defensores dos animais que afirmam ser adeptos dos direitos animais e da abolição, mas que continuam a comer produtos de origem animal–e muitas das grandes organizações de defesa animal minimizam a importância do veganismo. Em minha opinião, isso não é diferente de alguém que afirma ser a favor da abolição da escravidão mas continua a possuir escravos.

Não há nenhuma diferença significativa entre carne e laticínio (ou outros produtos de origem animal). Os animais explorados na indústria de laticínios têm a vida mais longa do que os que são usados para a produção de carne, mas são mais maltratados durante sua vida e terminam no mesmo matadouro, depois do quê consumimos sua carne do mesmo jeito. Há provavelmente mais sofrimento num copo de leite, ou num sorvete, do que num bife.

No nível social e político, deveríamos estar pondo os recursos do movimento em campanhas criativas para encorajar o veganismo, e não em campanhas para mais exploração “humanitária”.  As campanhas pelo veganismo têm um impacto mais direto na redução da exploração animal, através da diminuição da demanda, e representam passos incrementais significativos rumo à abolição.

“…já temos a regulamentação do bem-estar animal há 200 anos e ela não resultou na abolição de qualquer exploração institucionalizada. Estamos explorando mais não-humanos hoje do que jamais exploramos”.

RR: Por favor, explique com mais detalhes por que você diz que é equivocado elogiar grupos que fazem campanhas a favor de melhores padrões de bem-estar para os animais criados em fazendas.

GF: Eu rejeito essas campanhas bem-estaristas por várias razões.

Primeiro, não acho que a maioria dessas campanhas resultou, ou resultará, em proteção significativamente maior aos interesses dos animais. Conforme expliquei em meu livro Animals,Property, and the Law, os animais são propriedade. Eles são mercadorias.

Até onde respeitamos os interesses dos animais, isto tem um custo econômico. O resultado é que os padrões do bem-estar animal raramente vão além da proteção necessária à exploração dos não-humanos de um modo economicamente eficaz, dados determinados usos.

Segundo, até onde essas campanhas trazem quaisquer benefícios para os animais, esses benefícios com certeza acabam pesando menos do que o fato de os exploradores poderem exibir os elogios dos defensores dos animais a seu tratamento supostamente “humanitário” dos não-humanos. Por exemplo, depois que o  McDonald’s concordou em exigir que seus fornecedores seguissem certas diretrizes para o abate, concebidas pela consultora da indústria da carne Temple Grandin, a PETA deu um prêmio a Grandin e, junto com Peter Singer e outros pretensos defensores dos animais, elogiou publicamente o McDonald’s por liderar a melhora do tratamento dos não-humanos. Singer, PETA, Tom Regan e outros elogiaram a Whole Foods, Inc. e seu executivo-chefe, John Mackey, pelos seus padrões de “compaixão animal”, os quais supostamente exigem o tratamento “humanitário” dos animais que são vendidos como cadáveres nos estabelecimentos da Whole Foods.

Esses tipos de ação reforçam no público a noção de que podemos explorar os animais de um modo moralmente aceitável se apenas melhorarmos o tratamento dado a eles. De fato, Singer afirma explicitamente que não precisamos ser veganos, ou mesmo vegetarianos; podemos ser “onívoros conscienciosos” se tomarmos o cuidado de comer carne e laticínios produzidos de uma maneira “humanitária”. Mas se você disser às pessoas que elas podem ser “onívoras moralmente conscienciosas”, pode ter certeza de que elas não vão sentir necessidade de se tornar veganas. Isso é contraproducente em termos práticos.

Terceiro, considero seriamente problemática, em termos de ideologia do movimento, a posição de que a exploração mais “humanitária” é uma resposta moralmente aceitável à exploração animal. Claro que é “melhor” causar menos dano do que mais dano, uma vez que você tiver decidido causar dano. Por exemplo, é “melhor” que um estuprador não dê uma surra em sua vítima além de estuprá-la. Mas diríamos que podemos ser “estupradores conscienciosos” se evitarmos surrar as vítimas de estupro? Claro que não.

De forma análoga, se formos infligir dano aos animais, é “melhor” infligir menos dano, e não mais dano. Então, em certo sentido, eu suponho que seja melhor comer um animal que foi torturado menos, ser formos comer animais. Mas será que isso quer dizer que estamos agindo moralmente ao comer animais criados em circunstâncias supostamente mais “humanitárias”? Não no meu modo de ver.

RR: O que o leva a acreditar que os animais não-humanos têm o direito à vida?

GF: Os não-humanos têm interesse em continuar a existir e devemos proteger esse interesse com um direito, se não quisermos ser especistas.

Um preceito central da posição bem-estarista é que, em termos factuais, os animais não têm interesse em continuar a viver e só se importam com o modo como os tratamos. Por exemplo, Jeremy Bentham, um dos principais arquitetos do bem-estar animal, afirmava que os animais não se importam se os matamos e os comemos; eles só se importam com o modo como os tratamos. Peter Singer também adota a posição dele.

Em meu trabalho, eu argumento que essa posição está errada. É um absurdo afirmar que os seres sencientes têm interesse em não sofrer, mas não têm nenhum interesse em continuar a viver. A senciência é um meio para os fins da continuação da existência; a senciência é uma característica que evoluiu em certos seres como um mecanismo que facilita a existência continuada. Muitos animais não-humanos, assim como muitos humanos, suportarão um sofrimento terrível para continuar a viver. De qualquer forma, discordo de Bentham, Singer e outros que alegam que os animais não-humanos não têm interesse na existência continuada. A noção, promovida por Singer, de que a consciência de si semelhante à humana é necessária para se ter um interesse em continuar a existir é escancaradamente especista.

Se eu estiver correto e os animais não-humanos, assim como os humanos, tiverem interesse em continuar a viver, e se formos tratar esse interesse como moralmente significativo, então devemos aplicar o princípio da igual consideração e dar, a esse interesse do animal, a mesma proteção que damos ao interesse dos humanos em não ser usados como mercadorias.

Nós não achamos apropriado tratar um humano, seja ele quem for, exclusivamente como um meio para os fins de outro. Não achamos apropriado tratar humano algum como mercadoria. Não consideramos a escravidão—mesmo a escravidão “humanitária”—moralmente aceitável. Damos a todo ser humano, independentemente de sua inteligência ou outras características, o direito de não ser tratado como propriedade de outro.

Não há qualquer razão moralmente válida para negarmos esse direito aos não-humanos. Devemos dar a todo não-humano senciente o direito de não ser usado como mercadoria.

Esta é uma breve resposta a uma questão importante e complicada. Quem estiver interessado em mais discussão sobre este assunto pode dar uma olhada em meu livro Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? (2000).

“É um absurdo afirmar que os seres sencientes têm interesse em não sofrer, mas não têm nenhum interesse em continuar a viver”.

RR: Considerando-se que as atitudes da maioria dos seres humanos são especistas, sua posição abolicionista é realista?

GF: Certamente. De fato a promoção do veganismo, que considero a base do movimento abolicionista, é a única posição realista. O único modo pelo qual conseguiremos efetuar uma mudança expressiva quanto a usarmos e tratarmos os animais é construindo um movimento político e social de indivíduos que estejam comprometidos com a abolição e reconheçam que não podemos levar os interesses dos animais a sério enquanto continuarmos a comer carne, leite, ovos, etc.

Podemos construir esse movimento, mas precisamos apresentar uma posição abolicionista clara e consistente, que tenha como base moral o veganismo. Sim, as pessoas são especistas. Nós não vamos, entretanto, ajudá-las a rejeitar o especismo se nossa mensagem for a de que não devemos comer vitela vinda de bezerros criados em baias apertadas, mas devemos, em vez disso, comer vitela vinda de bezerros “criados soltos”.  Nós não vamos ajudar as pessoas a enxergarem que o sexismo é errado, se as incentivarmos a assistir apenas àqueles filmes pornográficos cujos atores recebem certos benefícios empregatícios. A mesma análise se aplica ao contexto animal.

Nós certamente não vamos conseguir nada com um movimento que diz que temos de tratar os animais “humanitariamente” e que podemos ser “onívoros conscienciosos”. O que não é realista é o bem-estar animal, e não a posição abolicionista. A posição do bem-estar animal irá apenas facilitar a continuação da exploração dos animais não-humanos. Acho extremamente preocupante que a maioria das grandes organizações de defesa animal ou não promovem o veganismo em absoluto, ou tratam-no como algo possível apenas para meia dúzia de heróis. O veganismo deveria ser apresentado como a posição normal, ou “automática”, do movimento.

Em suma, não seremos capazes de mudar as atitudes especistas se as reforçarmos, e isto é precisamente o que o bem-estar animal faz. Nenhuma afirmação de que é aceitável continuarmos a explorar não-humanos—por mais “humanitariamente” que o façamos—constitui progresso.

RR: Por que você diz que o uso que a PETA faz do apelo sexual em suas campanhas é destrutivo?

GF: Enquanto continuarmos a tratar as mulheres como mercadorias—e sexismo é isto—continuaremos a tratar animais não-humanos como mercadorias. Há uma relação muito profunda entre especismo e sexismo. Precisamos enxergar que o problema é a transformação de pessoas em mercadorias. Precisamos rejeitar isso em todos os contextos. O especismo é moralmente inaceitável porque, assim como o sexismo, o racismo e a homofobia, trata uma característica irrelevante (sexo, raça, orientação sexual) como uma barreira contra a integração completa à comunidade moral.

Devo acrescentar que penso que, em termos práticos, as campanhas sexistas da PETA não fizeram nada mais do que banalizar a questão da exploração animal. E essas campanhas não tiveram sucesso, embora o sucesso não as tornaria moralmente corretas. Veja a campanha contra as peles, que era o principal foco da PETA. A indústria da pele nunca esteve tão forte quanto agora.

“Acho profundamente preocupante que a maioria das grandes organizações de defesa animal ou não promovem o veganismo em absoluto, ou tratam-no como algo possível apenas para meia dúzia de heróis. O veganismo deveria ser apresentado como a posição normal, ou ‘automática’, do movimento”.

RR: Suas idéias são, de certa forma, parecidas com as de Tom Regan. Qual a diferença que você vê entre suas idéias e as dele?

GF: Nossas idéias são semelhantes porque Regan alega ser um abolicionista. Entretanto, há diversas diferenças.

Primeiro, eu afirmo que qualquer não-humano senciente tem o direito de não ser tratado como um recurso. Não é necessária nenhuma outra característica cognitiva. Embora Regan seja equívoco nesse ponto, ele liga valor moral a características cognitivas que estão além da mera senciência.

Segundo, Regan afirma que a morte é um mal maior para os humanos do que para os não-humanos. Eu não só rejeito esse ponto de vista no que diz respeito à questão empírica, como também considero-o problemático para qualquer teoria abolicionista.

Terceiro, Regan não pensa que o princípio da igual consideração possa nos fazer avançar muito na direção dos direitos animais. Conforme eu indiquei acima, penso que a igual consideração pode nos levar à posição abolicionista.

Quarto, Regan não dirige a atenção para a condição de propriedade dos animais. Na minha opinião, a exploração institucionalizada dos não-humanos não pode ser compreendida sem se reconhecer esse aspecto do problema.

Finalmente, Regan promove o bem-estar animal de maneira bastante ativa. Um recente exemplo disto é seu apoio ao Whole Foods, ao qual me referi acima.

RR: Você tem algum amigo que não seja vegano?

GF: Tenho amigos que comem carne e laticínios, assim como tenho amigos que são republicanos e eu certamente não sou um republicano. Mas todos eles sabem exatamente qual a minha posição quanto a essas questões.

Passo muito tempo conversando com meus amigos sobre veganismo e folgo em dizer que muitos deles se tornaram veganos. E eu nunca desisto de tentar convencer os outros. Nunca.

RR: Muito obrigada por nos deixar saborear sua filosofia relacionada aos animais. Foi um privilégio comparar os pontos de vista de três protagonistas neste campo, nas últimas três edições da The Vegan.

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