por Laerte Fernando Levai
1. INTRODUÇÃO
A experimentação animal, definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa, decorre de um erro metodológico que a considera o único meio para se obter conhecimento científico. Abrange a vivissecção, que é um procedimento cirúrgico, invasivo ou não, realizado em animal vivo. Ela ocorre com freqüência no ensino didático e nas pesquisas de base realizadas nas faculdades de medicina, biologia, veterinária, zootecnia, educação física, odontologia, farmácia, etc, apesar de alunos nem sempre a receberem com naturalidade. Sabe-se afinal, que apesar do ilusório paliativo representado pelo emprego de anestesia, os animais perdem a vida em experimentos invariavelmente cruéis, submetidos que são a testes cirúrgicos, toxicológicos, comportamentais, neurológicos, oculares, cutâneos, psicológicos, genéticos, bélicos, dentre outros tantos, sem que haja limites éticos – ou mesmo relevância científica – em tais atividades. Macabros registros de experiências com animais praticadas nos centros de pesquisa, nos laboratórios, nas salas de aula, nas fazendas industriais ou mesmo na clandestinidade, revelam os ilimitados graus da estupidez humana. Sob a justificativa de buscar o progresso da ciência, o pesquisador prende, fere, quebra, escalpela, penetra, queima, secciona, mutila e mata. Nas suas mãos o animal vítima torna-se apenas a coisa, a matéria orgânica, enfim, a máquina-viva.
Predomina no meio acadêmico, via de regra, a mentalidade vivisseccionista. O método científico oficial, herança francesa dos ensinamentos do filósofo Renê Descartes (1596-1650) e do fisiologista Claude Bernard (1813-1878), faz com que ainda hoje o corpo docente repasse aos alunos as informações que recebeu e assimilou passivamente, ao longo de várias gerações, como a única fonte “confiável” de conhecimento. A autoridade do professor, representante da instituição escolar, assim como a metodologia reducionista por ele adotada, raramente é questinada pelo estudante da área de biomédicas, que se cala por receio de se prejudicar na avaliação superior e por temor reverencial, inclusive. Nesse contexto, a ordem emanada da universidade torna-se imperiosa, oriunda de uma autoridade que incorpora uma verdade científica particular e que, sem admitir refutações, decide o que é certo ou errado no ensino, que manda e quem obedece, quem mata e quem morre.
Em termos legais, a atividade vivisseccionista esteve durante muito tempo respaldada unicamente na Lei federal nº 6.638/79. Com o advento da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), na qual o legislador inseriu um dispositivo específico sobre crueldade para com animais, sua prática passou a ser considerada delituosa caso não adotados os métodos substitutivos existentes. É que o artigo 32 § 1odo diploma jurídico ambiental incrimina “quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos“,cominando aos infratores pena de três meses a um ano de detenção, além de multa, sem prejuízo da respectiva sanção pecuniária administrativa.
Considerando a existência, na atualidade, de uma vasta gama de recursos hábeis a livrar os animais de seus padecimentos na mesa do vivissector, faz-se necessária uma mudança de paradigma na mentalidade dos mestres e dos pesquisadores, uma pequena revolução interior que lhes permita conciliar a ética à atividade didático-científica. O caminho já foi indicado na própria Lei Ambiental:adoção de métodos alternativos à experimentação animal. Mencionado dispositivo ajusta-se perfeitamente ao mandamento supremo expresso no artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, em que o legislador houve por bem vedar as práticas que submetam animais à crueldade: “Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade“. Daí a legitimidade de o estudante de biomédicas em buscar meios mais compassivos de pesquisa, os quais já existem e poderiam ser colocados em prática nas escolas.
É preciso, para isso, romper o silêncio que impera no campo da experimentação animal, enfrentando os tabus existentes, desmistificando crenças, questionando verdades preconcebidas, ampliando nossa perspectiva ética e projetando a noção do justo para além da espécie dominante. Como bem escreveu o professor Thales Tréz, no prefácio ao livro “Alternativas ao uso de animais vivos na educação”, de autoria do biólogo Sérgio Greif, a vivissecção faz com que os próprios alunos se tornem vítimas indiretas de seu equivocado método de pesquisa: “O uso de animais expõe o estudante muitas vezes a contradições, como o de matar para salvar, ou desrespeitar para respeitar. Segundo ele, “a prática do uso de animais seja em que área for, é insustentável do ponto de vista econômico, ecológico, ético, pedagógico e principalmente, incompatível com uma postura de respeito e cuidado para com a vida”.
Uma das formas legais de o estudante de ciências biomédicas desafiar a ordem cultural vigente é recorrer à cláusula de objeção de consciência à experimentação animal. Semelhante, sob certos aspectos, à desobediência civil, ela constitui uma legítima recusa à metodologia científica oficial, ao permitir que o aluno dissidente resguarde suas convicções filosóficas diante de procedimentos didáticos que se perfazem mediante a matança de outros seres senscientes. A objeção de consciência, portanto, é um ato praticado pelo sujeito que se recusa a obedecer à ordem superior que viola sua integridade moral, espiritual, cultural, política, etc. Trata-se de um legítimo direito do estudante, que, de modo pacifico, o invoca não apenas para resguardar as suas convicções íntimas garantidas pela Carta Política, mas sobretudo para salvar a vida e poupar os animais de sofrimentos. Neste ponto há uma interessante hibridez na atitude estudantil objetora, em que a conduta ética ultrapassa a barreira das espécies para constituir em instrumento político para uma mudança de paradigma.
O fundamento jurídico para invocar a resistência passiva encontra-se principalmente no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais da Constituição Federal – artigo 5º, incisos VIII -, conjugado com incisos II e VI (parte inicial) e no artigo 225 par. 1º, inciso VII (parte final) da Carta da República, podendo ser exercido mediante o exercício do direito de petição no âmbito administrativo (art. 5º, inciso XXXIV), sem prejuízo de o interessado – se necessário – ingressar em juízo com Mandado de Segurança (artigo 5º, LXIX, da CF).
2. O ALTAR CIENTIFICISTA
Foi a partir do racionalismo de René Descartes que o uso de animais para fins experimentais tornou-se método padrão na medicina. Tal filósofo justificava a exploração sistemática dos animais, equiparando-os a autômatos ou a máquinas destituídas de sentimentos, incapazes de experimentar sensações de dor e de prazer. Ficaram famosas, a propósito, as vivissecções de animais realizadas por seus seguidores na Escola de Port-Royal, durante as quais os ganidos dos cães seccionados vivos eram interpretados como um simples ranger de uma máquina. Foi o auge da teoria do animal-machine.
Em meados do século XIX Claude Bernard lançou as bases da moderna experimentação animal com a obra “Introdução à medicina experimental”, considerada por muitos como sendo a ‘bíblia dos vivissectores’. A partir daí a atividade experimental em animais ganhou novo impulso, sem qualquer preocupação ética por parte dos cientistas. Cães, gatos, macacos, ratos, coelhos, dentre outras tantas espécies transformadas em meras “cobaias” em experiências, passaram a sofrer refinada tortura nas mesas cirúrgicas, sob a justificativa de seu ‘sacrifício’ reverter em prol da ciência.
Os pesquisadores contemporâneos, salvo aqueles pertencentes à corrente antivivissecionista atuante em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, ainda estão imersos no antigo paradigma reafirmador das ideologias cientificista e tecnicista. Embora significativa parcela deles demonstre certo desconforto em admitir seu envolvimento com o método científico-experimental, justificam-no alegando que a vivissecção é um mal necessário. A respeito desse assunto o professor João Epifânio Regis Lima propôs séria reflexão sobre a metodologia oficial que legitima a tortura em animais. Em brilhante tese de mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1995, sob o título “Vozes do Silêncio – Cultura Científica: Ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção”, ele teve o mérito de questionar a postura científica dominante, na qual o capitalismo, o cientifismo e o tecnicismo constituem o tripé ideológico que sustenta as bases do sistema social vigente. Algumas de suas observações, nesse pioneiro trabalho crítico, merecem ser transcritas:
“Defender a vivissecção como técnca única (ou unicamente confiável) de exploração biológica a nível orgânico e médito é partir do princípio (positivista) de que apenas os fatos concretos e diretamente observáveis são fonte seguro de conhecimento”.
“Além de considerarem a ciência como a forma por excelência de adquirir conhecimento sobre o mundo, adota-se uma maneira particular de resolver problemas específicos a uma determinada área do conhecimento como sendo única, caracterizando a imersão em um paradigma, o qual, estando acima de qualquer suspeita, não é questionado”.
“A vivissecção, ou os pressupostos e princípios de que ela parte, acabaria desempenhando papel importante como afirmadora de uma ordem cultural de uma hegemonia, na medida em que define quem mata e quem morre, quem é sacrificável e quem não o é”.
“Mal necessário significando ‘não gosto, mas não há saída, não tenho saída’ revela um acuamento, um constrangimento de possibilidades de ação”.
Daí porque, conclui Regis Lima, o uso experimental de animais, no contexto acadêmico, apresenta-se como uma prática inercial, acrítica e tradicional, funcionando como instrumento de reafirmação de determinada ordem cultural:
“Toma-se a instituição científica como acima de qualquer suspeita e joga-se para ela a responsabilidade pela decisão, já que é o próprio paradigma por ela apresentado (que é tido como inquestionável) quem vai definir a prática. Neste caso, mesmo havendo desagrado com relação a ela, a dissonância e a tensão se encontram bem diminuídas ou mesmo inexistentes. A prática vivisseccionista – critica o autor – é vista como fato ‘consumado’, por ‘natural’ e ‘necessária’ (in Ob Cit., p. 182).
Aos olhos do pesquisador, portanto, os animais tornam-se criaturas eticamente neutras, coisas, produtos, matrizes ou peças de reposição, tratados como meros objetos descartáveis. Remanesce, na comunidade científica, um profundo silêncio sobre esse assunto, no qual a vivissecção funciona como instrumento de reiteração da ordem cultural vigente. Em meio a esse contexto impositivo, surge o direito à escusa de consciência como forma legítima de salvaguardar consciências e preservar convicções filosóficas.
É possível compreender, portanto, o acuamento do estudante em face de uma situação de conflito. Há que se considerar, nesse contexto, o temor reverencial do aluno em face de uma ordem emanada de seus superiores, até porque se sabe que as universidades costumam valer-se do principio da autoridade para impor sua metodologia. A Lei de Diretrizes e Bases, porém, em nenhum momento afirma que a experimentação animal é obrigatória nos cursos de biomédicas, tampouco permite que seu modelo curricular seja interpretado nesse sentido.
Há que se dizer, a propósito, que nenhuma lei ordinária está acima da Constituição Federal, onde a norma da escusa de consciência foi estabelecida como princípio consagrado em meio aos direitos e garantias individuais, à guisa de cláusula pétrea.
3. MÉTODOS ALTERNATIVOS
Verifica-se que a norma jurídica ambiental do artigo 32 par. 1º da Lei nº 9.605/98 reconhece a crueldade implícita na atividade experimental sobre animais, tanto que se adiantou em indicar outros caminhos para impedir a inflição de sofrimentos. Se hoje a realização de experimentos está condicionada à ausência de métodos alternativos, isso significa – na lúcida visão dos biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz (“A verdadeira face da experimentação animal”, p.137) – que, ao menos no plano teórico, a atividade vivisseccionista contraria a lei. Afinal, técnicas alternativas ao uso do animal em laboratórios já existem dentro e fora do país.
- Sistemas biológicos ‘in vitro’ (cultura de células, de tecidos e de órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer);
- Cromatografia e espectrometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo);
- Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo);
- Estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo das doenças);
- Estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas);
- Necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano);
- Simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal);
- Modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos);
- Culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos);
- Uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos);
- Membrana corialantóide (teste CAME, que utiliza a membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxicidade de determinada substância); etc.
O Ministério Público, a quem toca a tutela jurídica da fauna e o cumprimento das leis, não deve se omitir diante dessa cruel realidade. Atuando na condição de substituto processual dos animais (artigo 3º, par. 3º do Decreto nº 24.645/34) e curador do meio ambiente (artigo 129, III, da Constituição Federal), o promotor de justiça pode agir preventivamente, recomendando às escolas e aos institutos de pesquisa – de modo oficioso – a necessidade da substituição do uso animal pelos métodos alternativos e a garantia do direito de escusa à consciência para os alunos que porventura o quiserem.
6. CONCLUSÕES ARTICULADAS
6.1. A experimentação animal, prática ainda corriqueira na maioria dos laboratórios, centros de pesquisa ou estabelecimentos de ensino biomédico, no Brasil, é uma atividade imersa na ideologia científica dominante, na qual os animais – tidos como objetos de estudo ou peças descartáveis – são tratados de forma cruel, à guisa de seres eticamente neutros.
6.2. A Lei da Vivissecção (Lei federal nº 6.638/79), porque anterior à Constituição Federal, deve hoje ser interpretada à luz da Lei dos Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98), cujo artigo 32 par. 1º condiciona o uso de animais para fins científicos ou didáticos à inexistência de recursos alternativos, lembrando que esses métodos já são conhecidos e estão disponíveis no Brasil.
6.3. Semelhante à desobediência civil, direito de garantia contido no mandamento do artigo 5º, inciso II, da CF, a objeção de consciência à experimentação animal é uma forma particular de resistência pacífica invocada pelo estudante que, pretendendo resguardar suas convicções filosóficas, recusa-se a perpetrar atos de violência em detrimento de seres vivos.
6.4. Ao objetar a consciência em face de uma ordem superior que lhe põe em situação de conflito, o aluno age não apenas em benefício próprio, mas sobretudo para salvar a vida e evitar o sofrimento animal, demonstrando uma postura ética ampla que alcança, também, um sentido político.
6.5. Há que se garantir a possibilidade de o estudante da área de biomédicas invocar em seu próprio favor, sem riscos de represálias, a opção pela escusa de consciência à experimentação animal, com fundamento no artigo 5º, inciso VIII, da Constituição Federal, porque ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que desrespeite seus princípios filosóficos, culturais ou políticos, tampouco que ofenda sua integridade moral e espiritual.
6.6. Os preceitos estabelecidos na Lei de Diretrizes e Bases ou respaldados na autonomia didático-científica da Universidade não podem sobrepor-se às garantias individuais previstas na Constituição Federal (dentre elas o direito à objeção de consciência) para obrigar o aluno a práticas que violem sua consciência moral, como ferir e matar animais em nome de um suposto aprendizado e/ou progresso científico.
6.7 O direito à objeção de consciência nas atividades de experimentação animal, longe de se constituir mera liberalidade da Instituição de Ensino adepta da metodologia tradicional, é um direito líquido e certo dos alunos, a quem se permitirá uma contraprestação didática – trabalho alternativo ou atividade similar – compatível com a postura antivivissecionista.
6.8. Para exercer tal direito o estudante deve protocolar seu pleito de resistência junto ao professor da disciplina cuja metodologia é objetada ou diretamente ao diretor da Escola, fazendo-o com fundamento no artigo 5º, incisos VIII (escusa de consciência) e XXXIV, “a” (direito de petição), da CF e com a possibilidade de recorrer às vias judiciais, nos termos do art. 5º, inciso LXIX da CF (Mandado de Segurança), na hipótese de o pedido ser negado.
6.9. Ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, cumpre também defender os animais submetidos à vivissecção, podendo o promotor expedir Recomendações, firmar Termo de Ajustamento de Conduta ou ingressar com Ação Civil Pública, sem prejuízo de exigir que as faculdades da área de biomédicas, em sua comarca, disponibilizem ao aluno, desde a ocasião da matrícula, formulários permissivos da cláusula de objeção de consciência à experimentação animal.
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Laerte Fernando Levai – laertelevai@uol.com.br
Integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo, é promotor de Justiça em São José dos Campos, com atuação na área criminal, ambiental e defesa jurídica dos animais. Especialista em Bioética pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, da USP. Vice-presidente do Instituto Abolicionista Animal. Autor do livro “Direito dos Animais” (Editora Mantiqueira, 160 p.).