Veganamente falando.

“Não come carne? Então, come o quê?”.

Que atire a primeira pedra o vegetariano que nunca ouviu essa pergunta ou uma bem parecida. Apesar do esforço para mostrar que a vida sem carne no prato é perfeitamente normal, a verdade é que nossos dias não são nada comuns. O fato de excluirmos animais do cardápio gera uma bateria de reações que enfrentamos a toda hora, em quase todo lugar.

Não é simplesmente ser vegetariano e viver feliz para sempre, quietinho no seu canto. O dia-a-dia revela-se repleto de situações recheadas de perguntas, críticas e até ofensas. Mesmo os acontecimentos mais banais acabam se tornando, vamos dizer assim, especiais quando um vegetariano entra em cena. Saber lidar com tudo isso é primordial para a sobrevivência em um mundo nada pró vegetarianismo.

O bom humor e a diplomacia são os grandes aliados do quotidiano, transformando cada um desses momentos em oportunidades para esclarecer, desmistificar e reafirmar valores.

* O “ser vegetariano”

O vegetariano é quase um extraterrestre, alguém completamente fora de contexto. O fato de não comer carne é algo altamente incompreensível para a maior parte da humanidade.

Prova disso é a crença de que ninguém É vegetariano, mas ESTÁ vegetariano. De algum modo, as pessoas concluem que vegetarianismo é um modismo, como “dieta da lua” ou de “south beach”. É por isso que sempre tem alguém perguntando “E aí, continua sem comer carne?” ou “E aí? Ainda tá praticando aquela dieta?”. A conseqüência óbvia é continuarem oferecendo o que sabem que não comemos: “Vai um pedacinho de churrasco? Só um pedacinho!”.

Sem falar na imagem zen que os “comedores de folhas” passam. Quer coisa mais natureza do que alguém que só come planta? Ainda existe quem veja os vegetarianos como seres abstêmios, cuja vida se resume a ficar recitando mantras e tomando chá verde após a saladinha de cada dia, recolhendo-se quando o sol se põe.

O mais interessante é a classificação dos alimentos em dois grandes grupos: de um lado, todo o reino animal, de outro, a alface. A bendita alface! Muitos parecem crer piamente que os vegetarianos são uma espécie de seita, “Os Adoradores do Pé de Alface” ou algo do gênero. E daí, claro, deduzem que a comemos no café da manhã, no almoço e no jantar, sem falar nos pratos especiais elaborados à base da sagrada folha: suco de alface, bolo de alface, pastel de alface…

Como tirando a carne do cardápio não sobra nada para comer, querem logo saber, “Mas o que você come, afinal?”. Bem, nos dias em que a conjunção astral colabora, é possível dispor de toda a paciência para explicar que no mundo, além de animais, existem frutas, cereais, legumes… Mas, como às vezes é bom ser espirituoso, dá para sair com uma resposta tão básica quanto a pergunta: “Vivo de luz!”. Afinal, com tanto mato no cardápio, provavelmente já desenvolvemos a capacidade de realizar fotossíntese.

* Mitos, estereótipos e cia.

Quando acreditamos finalmente ter encontrado alguém que compreende o significado do termo vegetariano, o sujeito arremata: “Mas carne branca come, né?!”. E lá vem exemplo de primo distante que é vegetariano e come frango, sem falar dos famosos que dão receita de moqueca de peixe na TV, prestando um serviço de desinformação sem igual ao se declararem vegetarianos.

E por falar em peixe, para piorar a situação, ainda tem a velha lenda dos “frutos do mar”. Quem teve a infeliz idéia de criar a expressão devia mesmo nutrir um apreço especial por vegetarianos.

Se já é difícil explicar que frango é animal, portanto é carne também, mais complicado é convencer as pessoas de que peixe não é vegetal, assim como camarão e ostras não dão em árvore.

Muito comuns são os comentários a respeito da alimentação vegetariana, sempre tão gentis. Como ainda impera a crença de que nos alimentamos de folhas, ante a descoberta de que comemos quase as mesmas coisas que as pessoas “normais”, é natural a reação de espanto, acompanhada da certeza de que se trata de comida natureba ou insossa. Situações que ocorrem com certa freqüência, como no caixa do supermercado, quando um funcionário passa uma lata de salsicha vegetal com indisfarçável cara de nojo “Vai comer isso??? Credo!!!”.

Outra abordagem típica é a forma física do vegetariano. Ou melhor, a falta de forma. Afinal, muita gente ainda acredita que vegetarianismo e raquitismo são companheiros inseparáveis.

Se existe algum vegetariano que nunca foi perseguido por perguntas sobre sua saúde, é espécie em extinção. A idéia de fraqueza associada a uma alimentação sem carne apenas é reforçada pela descoberta de que, além do bifinho, alguns vegetarianos não consomem ovos, leite e seus derivados. Aí a coisa se intensifica: são quase inevitáveis as reações de espanto e incredulidade, aliadas, muitas vezes, à certeza de que o vegetariano em questão não bate bem da bola.

Curioso o poder que o vegetarianismo tem de mudar conceitos. Funciona como um daqueles espelhos que distorcem a imagem refletida. É muito comum que antes de saberem que não comemos carne as pessoas nos vejam normalmente, mas, depois da revelação bombástica, “Bem que eu desconfiei! Você anda tão magrinho!”.  Por outro lado, pode acontecer de, contrariando os mitos catastróficos, a descoberta causar um impacto ligeiramente diferente: “É vegetariano? Mas nem parece!”.

E nessa eterna batalha por credibilidade, os vegetarianos tornam-se reféns do imaginário popular, e se vêem praticamente obrigados a ter uma saúde perfeita. Sim, porque vegetarianos NÃO podem ficar doentes. Ai daquele que ouse, pois, se já estavam começando a aceitar seu modo de vida, basta um ventinho mais frio para algo tão inocente e natural quanto um espirro transformar-se em vilão, abalando a frágil atmosfera de paz: “Viu só? Eu te avisei! A gente não pode ser radical!”.
Depois de ter a honra de ver os desabafos que escrevi alçados à categoria de coluna, aqui estou eu novamente para compartilhar minhas impressões sobre a vida vegetariana.

“E por que dedicar uma coluna a isso?”, alguns poderiam perguntar. A resposta é simples: não sei!

Brincadeiras à parte, o negócio é muito sério. Claro, levamos na descontração porque esta é, sem dúvida, a melhor forma de enfrentar nossos dias, sempre cheios de situações muitas vezes nada agradáveis, mas que, com certa dose de humor, podem ser transformadas em momentos divertidos, pelo menos aqui, nesta coluna.

* A revelação

A revelação do vegetariano se dá de duas formas: ou ele se revela por si mesmo, ou alguém o fará em seu lugar. Quando o próprio resolve se mostrar como tal, a coisa não fica muito melhor do que na segunda hipótese.

Num primeiro momento, existem as pessoas que demonstram preocupação genuína:

“Mas é meio perigoso, não é, não?”

“Já procurou um médico?”

“Mas tem que tomar cuidado, viu?”.

Depois de um tempo, no entanto, parecem querer te avacalhar. Convidam para festas e dizem carinhosamente que haverá um prato especial para você. E haverá mesmo! Normalmente uma saladinha básica de alface (muuuuita alface) com rodelas de tomate e alguns copos d´água para ajudar a descer.

Há também aquelas que vão logo dizendo o que lhes vêm à cabeça diante da nossa declaração de que não comemos carne:

“Mas por que não? É tão bom!”

“Mas como é que consegue?”

“Que exagero! Um pouco só não faz mal.”

Depois de um tempo, ao verem que não há mais remédio para a situação, até viramos ponto de referência. Basta pegar uma conversa de rabo de ouvido para comprovar:

– Conhece o Fulano?

– Que Fulano?

– Aquele que não come carne.

– Ah, já sei quem é!

Como vegetarianos não são pessoas comuns, raramente passam despercebidos. Podem até se esforçar para isso em determinados lugares, mas quase sempre tem alguém que se encarrega de divulgar a notícia: sim, existe um vegetariano entre nós!

Aí, adeus sossego. Os olhares do ambiente se voltam para o vegetariano em questão e não dá mais para passar incólume.

Não é algo difícil de acontecer. Numa festa, por exemplo. Você começa tentando ser gentil, recusando cada um dos pratos oferecidos com toda amabilidade, até que lhe perguntam se tem algum problema alimentar.

“Não, é que eu sou vegetariano…”, você responde baixinho, na esperança de que a coisa acabe por ali.

“O quê?”, a pessoa pergunta.

“Sou vegetariano…”, você repete, ainda em tom baixo.

“VEGETARIANO???”, o interlocutor pronuncia, gritando.

“É, eu não como carne”, você tenta explicar, mas já é tarde demais.

“COMO ASSIM NÃO COME CARNE????”, ainda gritando, à essa altura a gentil pessoa já despertou a atenção de todos os convidados, e você acabou de se tornar a principal atração da festa.

Por mais incrível que pareça, ainda existem as pessoas que, diante da descoberta, parecem ficar constrangidas. É como se, naquele momento, sentissem uma espécie de inadequação, como se, lá no fundo, tivessem consciência de estarem fazendo algo não muito louvável. E saem com essas:

“Sabe que eu nem gosto muito de carne? Eu como tão pouco…”

“Até que eu gostaria de não comer carne, mas não consigo!”

“Deve ser muito saudável! Eu admiro quem tem coragem!”

Talvez a parte mais difícil da vida vegetariana consista em estar sempre oferecendo explicações à sociedade. Pensando bem, complicado ser vegetariano desde que o mundo é mundo, pois, se hoje em dia, quando estamos teoricamente tão evoluídos, ainda sofremos perseguição, imagina algumas décadas atrás!

Nós temos de explicar direitinho a todos o que nos move a um modo de vida diferenciado; a maioria, no entanto, não se preocupa em nos dar uma justificativa decente para os seus hábitos.

Resolvi, então, começar a inquirir meus inquisidores: “Por que você come carne?”. A verdade é que, até hoje, ainda não obtive respostas mais profundas do que “Não dá para viver sem!” ou “Ué, por que eu não comeria?”.

* Fornecendo explicações básicas

As explicações que precisamos fornecer geralmente versam sobre coisas básicas, tipo: “Mas nem peixe?”, ou então: “E as proteínas? De onde tira as proteínas?”.

A vida de um vegetariano não é fácil, em especial a de um vegano, que tem de dar tantas ou mais explicações à sociedade do que os ovo-lacto: “Tá, carne ainda vai, mas, leite e ovo? Os animais não morrem para nos dar esses produtos”.

É aí que o diplomata vegano, aquele que, apesar de já estar cansado de ouvir as mesmas perguntas e ter de oferecer sempre as mesmas respostas, respira fundo e entra em cena.

* Constatando resistência

Muitos até simpatizam com a filosofia do vegetarianismo, mas temem a mudança de hábitos e/ou a ridicularização. Diante desses casos, o recomendável é não forçar, tentar compreender sem deixar de dar uma forcinha por meio de esclarecimentos.

Alguns casos, entretanto, são mais críticos. Estou me referindo àquelas pessoas que parecem não querer tomar consciência: “Ai, que horror eles fazem com os porquinhos… Eu não posso ver isso senão vou ficar deprimida… Mas eu não vou deixar de comer carne, não!”.

Outros, por sua vez, não conseguem produzir mudanças individuais: “Se o meu marido fosse vegetariano, eu com certeza seria”. Seja como for, o respeito e a paciência continuam valendo.

* Entrando em discussões

As discussões acerca do vegetarianismo são inevitáveis. Se você é vegetariano e nunca foi envolvido em uma, não se preocupe, isso ainda vai acontecer, mais cedo ou mais cedo.

As pessoas que topam com um vegetariano em seu caminho costumam não deixar passar a oportunidade para crivá-lo de perguntas. Algumas de boa-fé, por desconhecimento mesmo; outras, recheadas com o animus sacaneandi, ou seja, a nítida vontade de sacanear.

A mais comum é a tentativa de arrancar de um vegetariano a confissão de que um dia, em uma situação absurdamente hipotética, cederia aos “pecados da carne”. A historinha da vaca no deserto é clássica!!

E o que fazer nessas situações? O melhor é manter a calma, respirar fundo e explicar que não se trata da última tentação de Cristo ou algo parecido. Vegetarianismo não é auto-flagelação.

Outros, por desconhecerem a real situação, defendem o que consideram uma saída melhor. Já me deparei com a alegação de que animais criados para o abate podem ser “muito bem tratados, sim senhora”, conforme informação de uma colega, defendendo a fazenda modelo de um parente: “Os boizinhos são muito bem tratados, à base de soja e fubá, precisa ver!”.

Difícil foi explicar que esse tratamento exemplar não justificava a morte daqueles seres simplesmente para a satisfação do paladar de algumas pessoas. Sem falar que o fubá e a soja poderiam ser fornecidos diretamente como alimento a seres humanos que precisam, poupando recursos. Seria uma atitude inteligente, mas sei que é difícil para alguns pensar tão profundamente a respeito, afinal, não é tão simples entender as grandes implicações do consumo de diversos produtos tidos como indispensáveis em nossa sociedade. A maioria dos vegetarianos, por exemplo, já comeu carne um dia (embora hoje eu não consiga me imaginar nessa situação). Isso prova que os vegetarianos são pessoas normais, imperfeitas, a diferença está justamente na oportunidade que se deram de abrir suas mentes e enxergar além. Prova também que qualquer um pode se tornar vegetariano.

Outro tema que as pessoas adoram discutir são os filhos de vegetarianos. Sim, muitos até simpatizam com uma alimentação sem carne, mas se falar em crianças, tudo muda de repente: “Os pais serem, até aí tudo bem. Mas não se deve impor essa alimentação aos filhos”.

O que acho mais engraçado nesse tipo de argumento é a absoluta falta de coerência, mas quem o defende parece não perceber. O que poderíamos levantar sobre religião, então? Via de regra, não é algo “imposto” desde o nascimento? Ou a criança é quem escolhe se vai ser católica, protestante ou adoradora de satã (sem nenhuma intenção de ofensa, aqui, por favor)?

O que falta nesse discurso é lógica. Obviamente, uma criança tem tanto discernimento para escolher uma religião como para escolher o que vai comer. Não tem a menor noção do que seja a carne, de onde ela veio e o que foi preciso para que chegasse a seu prato, e, na maioria das vezes, é enganada pelos adultos a fim de aceitar ingeri-la. Se ela não tem consciência das implicações de sua alimentação, cabe aos pais tomar decisões conscientes por ela, até que atinja, por si mesma, o conhecimento da verdade e possa escolher continuar ou abandonar o que aprendeu. As pessoas só deveriam fazer algo quando plenamente conscientes de tudo o que aquela determinada atitude envolve.

Trata-se do velho mito de que criança que não come carne nasce sem cérebro ou cresce menos. E tudo isso vem sendo enfaticamente refutado, basta se informar um pouco.

Existem, ainda, as teorias de que o homem só tem o cérebro que tem, graças à ingestão massiva de carne. E já vimos a que esse grande cérebro nos levou: duas guerras mundiais, massacre de milhares de inocentes, esgarçamento da camada de ozônio, escassez de água, aquecimento global, poluição…

Para os que acreditam fervorosamente nessa teoria, respondo com o seguinte argumento: certo, se já evoluímos, então, para que continuar com esse hábito? Afinal, pelo o que sei, uma espécie, ao evoluir, incorpora os fatores benéficos… ou você acredita que, ao pararmos de comer carne, nosso cérebro vai diminuir, ou, pior, desaparecer?

A verdade é que pouco importa se fisiologicamente somos herbívoros ou onívoros, se nosso organismo é capaz ou não de ingerir carne. Pelo menos para mim, o que importa é que somos seres capazes de agir conscientemente, de entendermos as implicações de nossas atitudes e mudar posturas incorretas.

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