Vegetarianos porque judeus

Marina Lemle / Especial para ASA

Em 15 anos de vegetarianismo e prática do jornalismo, esta é a primeira vez que escrevo sobre minha opção de não comer animais. Primeiro, porque é uma questão de foro íntimo; depois, porque fujo de “certos” e “errados” radicais, preferindo relativizar a pretender arbitrar; e, ainda, porque tenho pouca paciência para ironias do tipo “e a alface não é um ser vivo?” (para constar: sim, mas ela é de outro reino e não tem um sistema nervoso que lhe faça sentir dor e medo, pelo menos nas formas em que conhecemos).

Falo disso agora porque quero compartilhar a alegria que tive ao ficar sabendo, através do texto de Jacques Gruman lido por ele e por mim no recente pré-seder laico da ASA, que, além dos judeus engajados em causas sociais, ambientais e dos direitos humanos, existem judeus preocupados também com o bem-estar  de todos os bichos.

Sempre achei que a origem de minha opção estava na educação judaica liberal/progressista,  que cultivou em mim a eterna busca pela ética e me ensinou a refletir sobre o significado dos rituais, símbolos e tradições.

Segundo a Torá, até a geração de Noé toda a Humanidade era vegetariana. Depois do Dilúvio, o consumo de carne foi autorizado. As interpretações da halahá, a Lei Judaica, sobre se os humanos devem ou não comer animais, são diversas e às vezes contraditórias. Embora todos concordem ser proibido causar sofrimento aos animais, a Torá afirma que eles são feitos para servir ao homem: “Que o homem domine sobre os peixes, as aves e todos os animais” (Bereshit 1:26).

De acordo com o site do Beit Chabad do Brasil (www.chabad.org.br), de vertente hassídica, “mais que visar nossa sobrevivência, alimentar-se é um meio de trazer santidade a nossas vidas”. Isso seria possível observando-se as leis da Torá. “Pode-se comer carne desde que: o animal pertença a uma espécie permitida; seja ritualmente abatido; tenha removidos os elementos não-kosher (sangue e algumas gorduras e nervos); seja preparado sem misturar carne e leite; e as bênçãos apropriadas sejam recitadas.”

O Beit Chabad ensina que a shehitá, o abate ritual conforme a halahá,  deve ser feita com o mínimo de sofrimento para o animal, examinando-se a lâmina meticulosamente para assegurar a morte mais indolor possível. A caça de animais por esporte é proibida pelos sábios.

O abate  é um dos pontos mais criticados pelos ativistas judeus vegetarianos. O site HumaneKosher.com traz um vídeo chocante que mostra abusos de uma das maiores indústrias americanas de comida kosher, a AgriProcessors Inc. No vídeo, um boi é carregado por um guindaste e posto num cubículo. Depois, em outro compartimento, o animal leva um golpe impreciso de uma máquina, cai e se debate, escorregando sobre uma poça de sangue. O abuso, denunciado em 2004 pelo New York Times, foi minimizado pela União Ortodoxa, que considerou aceitáveis as técnicas utilizadas.

Os “veggie Jews” defendem um novo kashrut, baseado na dieta vegetariana. Para Richard Schwartz (www.jewishveg.com/schwartz/), autor de livros e cursos sobre vegetarianismo, não se devem considerar apenas os últimos minutos de vida do animal. “O que dizer da tremenda dor e crueldade envolvidas em todo o processo de criação e transporte dos animais? Se o consumo de carne não é necessário e faz até mal para a saúde, como pode qualquer método de abate  ser considerado humano?”,  questiona.

Para a Cabalá, isso não é necessariamente uma contradição.  Almas humanas que durante três encarnações só emitem negatividade podem ter que reencarnar em níveis inferiores − animal, vegetal ou até inanimado. Comer um animal que tenha alma humana ajudaria a elevá-la de volta ao estado humano. Como a geração de Noé era totalmente negativa, ali começou o processo de almas humanas reencarnando em níveis inferiores, sendo esse o motivo de a Humanidade deixar de ser vegetariana.

A tendência atual, que a própria Cabalá vê com simpatia, de retorno ao vegetarianismo se explicaria pelo fato de estarmos no final do processo de correção da Humanidade, não havendo mais tantas almas humanas encarnadas em animais. Se a pessoa tiver a capacidade de manter elevada sua consciência e elevar a “faísca de Luz” dentro da carne, é bom comê-la, caso contrário, é melhor não. Cabalisticamente, o ideal hoje seria ser vegetariano durante a semana e, no Shabat ou nas festas − quando seria mais fácil “elevar as faíscas” −, comer carne.

Tendo dito não à carne, mas sim ao judaísmo, os judeus vegetarianos se viram na necessidade de adaptar rituais. Hoje existem hagadot de Pessach onde os símbolos animais são substituídos e livros de receitas típicas, reformulados. A escritora judia-vegetariana mais conhecida é Roberta Kalechofsky. Em seus livros, ela dá razões ecológicas, econômicas, éticas e de saúde para a adoção do vegetarianismo, boa parte delas sob ótica judaica.

“O problema moderno da carne, para judeus e não judeus, vai além da questão sobre como o animal foi abatido, estendendo-se às condições industriais em que foi criado. Isso leva ao questionamento sobre se as tradições dashechitá e do kashrut estão obsoletas diante das formas modernas de criação”, afirma Roberta.

Judaísmo é livre-arbítrio. Boa escolha.

One response to this post.

  1. Fascinante. Vim parar no seu blog porque estava pesquisando a alimentação kasher em relação ao bem-estar animal. Texto muito bem escrito, parabéns!

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